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Beirute, várias crises e duas explosões. "Sentimo-nos varridos da face da Terra"

Postado às 05h32 | 05 Ago 2020

Incêndios, fumaça, escombros, gruas. Um cenário apocalíptico no porto de Beirute.

Diário de Notícias, Lisboa, Portugal

Duas mil setecentas e cinquenta toneladas de nitrato de amónio, um fertilizante que tinha como destino a cidade moçambicana da Beira, duas explosões, pânico, morte e destruição. Beirute vive horas de choque e angústia na sequência do que terá sido um acidente [só Donald Trump falou em possível ataque até agora] no porto da capital do Líbano, onde estava armazenado aquele material altamente inflamável.

A segunda explosão, que projetou uma enorme bola de fogo cor de laranja para o céu, em forma de cogumelo, arrasou a zona portuária e provocou uma onda de choque semelhante a um tornado pela cidade, estilhaçando janelas a quilómetros de distância.

A magnitude da explosão foi tal que o Observatório Sismológico da Jordânia reportou que a energia libertada equivaleu a um sismo na ordem de 4.5 na escala de Richter. O ruído foi ouvido em Nicósia, a capital de Chipre, a 240 quilómetros.

Com os parentes dos desaparecidos a juntarem-se para receber notícias um soldado disse à AFP: "É uma catástrofe. Há cadáveres no chão. As ambulâncias ainda estão a levantar os mortos". Já na manhã desta quarta-feira, um novo balanço da Cruz Vermelha do Líbano apontava para mais de 100 mortos e 4 000 feridos - e os números ameaçam continuar a aumentar nas próximas horas. Entre os feridos há marinheiros da missão de paz da ONU.

"Foi como uma bomba atómica", disse Makrouhie Yerganian, uma professora reformada, residente há décadas na zona portuária. "Já vivi tudo, mas nada como isto", tendo depois descrito que todos os edifícios à volta "entraram em colapso". No edifício onde vivia morreu o seu tio, na sequência dos ferimentos da explosão.

"Ouvimos uma explosão, depois vimos o cogumelo", disse uma residente de Beirute que testemunhou a segunda, ensurdecedora explosão da sua varanda no distrito de Mansourieh, na cidade. "A força da explosão atirou-nos de costas para dentro do apartamento".

"O que aconteceu hoje não passará impune", disse o primeiro-ministro Hassan Diab. "Não vou descansar até que os responsáveis pelo que aconteceu sejam responsabilizados e sofram as mais severas penalidades, porque não é aceitável que um carregamento de nitrato de amónio estimado em 2750 toneladas permaneça seis anos num armazém sem se tomarem medidas preventivas", asseverou.

Diab pediu ajuda dos outros países para enfrentar a emergência. "Estou a enviar um apelo urgente a todos os países que são amigos e irmãos e que amam o Líbano, para que fiquem ao seu lado e nos ajudem a tratar estas feridas profundas", disse o primeiro-ministro.

Entre mensagens de solidariedade e de condolências, o Qatar anunciou o envio de dois hospitais de campanha, o Iraque um hospital de campanha e a França também se comprometeu, sem especificar a sua contribuição. Mas a mais surpreendente veio de Israel. Telavive, que rapidamente afirmou não ter algo a ver com o incidente, informou o enviado das Nações Unidas para o Médio Oriente que está disponível para ajudar.

"Parece ser um ataque terrível", disse por sua vez o presidente dos Estados Unidos."Eu falei com os nossos generais e parece que não foi um acidente industrial. Parece, segundo eles, que foi um ataque, uma bomba", reforçou. em declarações aos jornalistas. Donald Trump foi o único líder a avançar com um comentário desta natureza.

Segundo relatórios preliminares reportados pela LBCI News, o que terá desencadeado as duas explosões foi uma operação de reforço de segurança do armazém onde estava o nitrato de amónio, e que envolveu a soldadura de materiais.

Em 2013, o cargueiro Rhosus, que partiu da Geórgia com destino a Moçambique, foi obrigado a entrar no porto de Beirute devido a problemas técnicos. Não mais saiu: uma inspeção determinou que não estava em condições de zarpar e a sua carga, 2750 toneladas do fertilizante, terá sido guardada num armazém do porto.

"Não conseguimos sobreviver a tudo"

A escritora Hyam Yared deixou o seguinte testemunho no Le Monde: "A memória da Guerra Civil está muito presente em mim. Não sei como nos vamos aguentar se desta vez tudo tiver de voltar a acontecer. Podemos ser todos sobreviventes neste país, mas não conseguimos sobreviver a tudo. E a raiva é imensa, porque o Líbano já não aguenta mais. Nos últimos meses tem havido esta nova crise política que nunca mais acaba, o elevado custo de vida que empurra as pessoas comuns para a miséria e agora, simbolicamente, a destruição da nossa cidade. Temos a sensação de sermos varridos da face da terra."

E não é para menos. O Líbano, um estado frágil onde se aloja outro estado, o Hezbollah, vive uma cascata de crises: política, económica, financeira, social, e de saúde pública.

A perda do porto (e do trigo armazenado nos silos) de Beirute é tremenda. Limitado a sul por Israel, que é considerado um inimigo, e pela Síria devastada pela guerra a leste, o Líbano depende em grande medida do seu porto para as importações.

A influência do Hezbollah

No campo político aguarda-se o veredicto de um tribunal internacional em Haia que investigou o atentado que assassinou em 2005 o então primeiro-ministro Rafic Hariri. Quatro militantes do Hezbollah, a organização apoiada pelo Irão cujo braço armado é considerado terrorista pela União Europeia, estão a ser julgados à revelia.

Nos últimos dias o Hezbollah e as forças armadas de Israel andaram especialmente tensos. Há duas semanas um ataque aéreo israelita na periferia de Damasco matou um combatente do Hezbollah. Foi depois noticiado que Telavive fez chegar à milícia libanesa xiita que o ataque foi um erro, mas a reação foi a de sempre: prometer retaliação.

 

O chefe do Hezbollah, Hassan Nasrallah, prometeu vingança e Israel aumentou o número de forças na fronteira norte, onde faz fronteira com o Líbano e a Síria

Na semana passada, as forças israelitas impediram uma tentativa de infiltração por parte dos combatentes do Hezbollah, tendo desencadeado uma das mais pesadas trocas de fogo ao longo da fronteira Israel-Líbano desde a guerra em 2006.

No entanto, ao Al-Monitor, a mensagem que Telavive quis passar é a de que não está interessado na escalada do conflito, até por motivos económicos, pelo que não alvejou nenhum miliciano xiita de propósito.

"Não há necessidade de consertar algo que não esteja partido", disse uma fonte da defesa israelita ao Al-Monitor. "O Hezbollah está atolado numa crise profunda, o Líbano está em colapso, as pessoas lá não têm comida, não há fornecimento de energia, a situação no Irão está a afetar o orçamento de Nasrallah e ele está a recuar e a ficar mais fraco", comentou.

"Um dia de luta ou mesmo uma guerra com Israel nesta altura poderia ter o efeito contrário e dar-lhe uma saída para a sua situação difícil. Nasrallah continua a alimentar a sua imagem como defensor do Líbano e não há necessidade de fazer o seu jogo nesta fase", conclui esta fonte.

Crise no governo

Na véspera do desastre, o ministro dos Negócios Estrangeiros Nassif Hitti demitiu-se, e na carta entregue ao primeiro-ministro denunciou a falta de reformas do governo e a sua paralisia para enfrentar os desafios de tal forma que hoje "o Líbano está a resvalar para se tornar um Estado falhado".

O governo de Hassan Diab, formado há pouco mais de meio ano na sequência de protestos populares contra o aparelho de Estado, ao longo de meses no ano passado, nasceu da promessa da aplicação de reformas abrangentes.

Diab já se tinha envolvido numa controvérsia ao criticar -- ou antes, a sua conta no Twitter -- o seu homólogo francês. Alguns dias depois de Jean-Yves Le Drian ter visitado Beirute no mês passado uma mensagem da conta oficial de Diab no Twitter disse que Le Drian não trouxe "nada de novo" e mostrou uma "falta de conhecimento sobre o caminho das reformas governamentais", tendo ainda lamentado que "a decisão internacional até agora não é de ajudar o Líbano".

A mensagem foi mais tarde apagada e Diab recebeu uma delegação da embaixada francesa.

Antes do diplomata, o governo assistiu a duas demissões de alto nível na equipa que está a negociar com o Fundo Monetário Internacional (FMI) um plano de resgate. Ambos tinham alegado a mesma falta de vontade de reformas devido aos interesses instalados na elite político-financeira do país.

Sem reformas não há dinheiro

O pequeno país, que recebeu da vizinha Síria cerca de 1,5 milhões de refugiados (cerca de um quarto da população) vive uma emergência sanitária devido à pandemia, e está a braços com uma situação económico-financeira de tal modo complicada que a França, antiga potência colonial, se recusou a prestar ajuda financeira enquanto as reformas não começarem.

O FMI também estará longe de chegar a acordo com Beirute.

O país é hoje o terceiro mais endividado do mundo e a agência de notação Moody's deu ao Líbano a pior classificação possível, estando agora ao lado da Venezuela. E também noutra característica pouco invejável, a hiperinflação. Desde o mês passado que o país se tornou no primeiro do Médio Oriente e África do Norte a passar os 50% de inflação mensal.

A sua moeda desvalorizou-se em relação ao dólar cerca de 80%, e o desemprego saltou para 35%. Em março, quando as economias se fecharam devido à pandemia, o Líbano já se encontrava em situação de incumprimento, com uma dívida de 1,2 mil milhões de dólares.

Há contínuos protestos antigovernamentais no país. Horas antes da dupla explosão em Beirute, uma manifestação à porta do Ministério da Energia tinha resvalado em violência. As pessoas, que se queixam dos constantes cortes de eletricidade, queriam entrar no edifício, tendo sido reprimidos pela polícia.

Esquema Ponzi

Os problemas já vêm de longe, mas agravaram-se nos últimos meses. Enquanto os libaneses foram para a rua protestar com a incapacidade do governo em fornecer serviços básicos e muito menos levar a cabo reformas constantemente adiadas, no final do ano passado assistiu-se ao que analistas disseram ser um esquema Ponzi gerido pelo banco central. Este contraía empréstimos de bancos comerciais a taxas de juro acima do mercado para pagar as suas dívidas e manter a taxa de câmbio fixa da libra libanesa com o dólar americano.

Os libaneses, que já não tinham acesso às suas poupanças em dólares desde o outono em resultado das restrições impostas pelos bancos em resposta à crise de liquidez, tiveram de lidar, a partir de junho, com o colapso da moeda e o aumento em espiral do preço dos alimentos básicos.

Em julho, o Le Monde dava o exemplo multiplicado por dois ou três, tais como um quilo de carne de vaca, agora cobrado a 50.000 libras, em comparação com 18.000 dois meses antes.

O país tradicionalmente de rendimento médio-alto foi desclassificado para um estado de baixo rendimento. O salário mínimo do Líbano, que valia o equivalente a 393 euros passou a valer apenas 58 euros.

"Durante a guerra civil [1975-1990], o dinheiro fluía livremente porque cada fação tinha o seu próprio doador estrangeiro. Hoje em dia, o país está a sufocar. A classe média está a desaparecer", diz Talal Salman, de 82 anos, antigo diretor do extinto diário As-Safir ao vespertino francês.

Nadine Al-Meer, de 43 anos, é uma das pessoas que sofre na pele a crise. Ex-contabilista, viu os rendimentos do marido, taxista, passarem a metade. Em dificuldades, recorreu à ajuda de uma ONG que assiste os refugiados sírios. "A parte mais difícil é à noite", diz. "Não se consegue adormecer porque se pergunta como é que vamos alimentar as crianças no dia seguinte."

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