Postado às 05h44 | 30 Set 2020
BBC-Brasil
Depois de meses de trocas de acusações pela imprensa e nas redes sociais, o democrata Joe Biden e o republicano Donald Trump se enfrentaram diretamente pela primeira vez na noite desta terça-feira, 29/9, em frente às câmeras da rede de TV Fox News, a 35 dias das eleições presidenciais nos Estados Unidos.
E o resultado foi caótico.
Sob a tentativa de moderação do jornalista Chris Wallace, que aos 72 anos era o mais novo entre os três homens a ocupar o palco da Fox News, Biden e Trump protagonizaram um espetáculo agressivo e confuso durante 90 minutos, sem intervalos.
Por um lado, Trump falava não apenas no seu tempo, mas no do rival e até em cima das falas do moderador. Por outro, Biden foi lento nas respostas e partiu para ofensas pessoais ao chamar o republicano de "palhaço", "mentiroso", "racista" e "fantoche de Putin". "Você vai calar a boca?", disparou o ex-vice-presidente em dado ponto do evento. Wallace, o moderador, chegou a gritar com os dois candidatos em mais de uma ocasião. "Senhor presidente, eu sou o moderador desse debate", ele precisou relembrar.
Uma pesquisa feita pela rede CBS News logo depois do debate, com eleitores que assistiram ao programa, mostrou que 48% deles creditaram vitória a Biden, contra 41% que disseram que Trump venceu. Já 69% dos espectadores se disseram irritados com o espetáculo a que assistiram.
Mas, afinal, sobre o que os candidatos falaram?
Embora tenha sacado uma máscara do casaco de seu paletó durante o debate, depois de meses se recusando a usá-la, Trump teve pouco sucesso em defender sua gestão sanitária. "Ele não está preocupado com você. Ele foi totalmente irresponsável com distanciamento social e máscara", acusou Biden.
A pandemia de coronavírus, que recém atingiu a marca global de 1 milhão de mortos, fez mais de 20% de suas vítimas nos Estados Unidos, cuja população representa menos de 5% dos habitantes do mundo. E o desempenho de Trump é mal avaliado pelo eleitorado em geral.
Biden afirmou que Trump escondeu a gravidade do problema dos americanos e que só entrou em pânico quando percebeu uma queda no mercado de ações, em uma ironia com o fato de Trump ter dito ao jornalista Bob Woodward que subestimou publicamente a covid-19 para não criar pânico na população.
Crítico da gestão ambiental de Trump, que retirou os Estados Unidos do Acordo do Clima de Paris, e da proximidade entre o presidente americano e o mandatário brasileiro Jair Bolsonaro, Biden aproveitou a discussão sobre aquecimento global e citou a destruição na Amazônia brasileira como um problema para o qual ele teria uma solução: dar dinheiro ao Brasil para conservá-la e, se isso não funcionar, submeter o país a sanções econômicas.
"As florestas tropicais do Brasil estão sendo destruídas. Mais carbono é absorvido naquela floresta do que é emitido pelos Estados Unidos. Vou garantir que vários países se juntem e digam (ao Brasil): 'Aqui estão US$ 20 bilhões, parem de destruir a floresta. E se vocês (Brasil) não pararem, então vocês sofrerão significativas consequências econômicas'", afirmou Biden.
Embora seja contundente e direta, essa não é a primeira declaração que o democrata ou sua vice, Kamala Harris, fazem críticas diretas ao Brasil ou a Bolsonaro por conta da destruição ambiental. A atual chapa democrata é considerada a mais crítica a um governo brasileiro na história da relação entre os dois países.
As famílias dos dois candidatos se tornaram combustível para o debate. Primeiro, ao dizer que Biden não seria capaz de lidar com a atual disputa global com a China, Trump afirmou: "A China comeu seu almoço, Joe. Não é à toa que seu filho vai (à China) e tira bilhões de dólares. Tira bilhões de dólares para administrar (negócios). Ele faz milhões de dólares".
O comentário é uma alusão aos serviços de consultoria prestados por Hunter Biden, filho de Biden, em países como China e Ucrânia. Os republicanos têm acusado Hunter de tirar proveito da proeminência do pai na política americana para fechar contratos lucrativos no exterior, prometendo algum tipo de tráfico de influência às empresas que o contratam. Biden negou as acusações durante o debate. Até hoje não há comprovação de que exista qualquer crime nesses negócios.
Biden reagiu: "Aqui está o acordo. Você quer falar sobre família e ética? Eu não quero fazer isso. (Sobre) sua família, podemos conversar a noite toda".
Ivanka, filha de Trump, é uma de suas mais importantes assessoras na Casa Branca e o genro do presidente, Jared Kushner, é seu conselheiro para assuntos internacionais. Trump se defendeu dizendo que seus parentes "perderam uma fortuna" para ajudá-lo na administração do país.
Mais adiante, foi a vez de Biden citar outro de seus filhos, Beau, como um exemplo de herói americano por ter servido o Exército na guerra do Iraque. Biden queria fustigar Trump, acusado de ter chamado veteranos de guerra feridos ou soldados americanos mortos de otários e perdedores. Em resposta, Trump acusou Hunter Biden de ter sido expulso das Forças Armadas por uso de cocaína. Biden reconheceu que o filho sofreu com dependência química.
"Meu filho, como muita gente, como muita gente que está em casa, teve problemas com drogas. Ele superou isso. Ele consertou. Ele trabalhou nisso. E estou orgulhoso dele", disse Biden.
O tema da violência policial contra negros, dos protestos por justiça racial e dos atos de violência associados a eles também foram tema do debate. Nos últimos meses, os americanos assistiram a cenas de confronto entre manifestantes Black Lives Matter e militantes da extrema direita e supremacistas brancos. Em Kenosha, um supremacista branco matou duas pessoas há algumas semanas. E em Portland, uma carreata de apoiadores de Trump distribuiu ataques de spray de pimenta e tiros de arma de paintball contra manifestantes pelos direitos dos negros.
"Eu diria que quase tudo que vejo (de violência) vem da esquerda, não da direita", disse Trump, que se recusou a condenar amplamente os movimentos de supremacistas brancos.
Biden chamou Trump de "racista" e negou que seja a favor da retirada de financiamento dos departamentos de polícia, como quer parte do movimento Black Lives Matter.
O presidente americano voltou a denunciar que considera estar em curso uma fraude eleitoral e se recusou mais uma vez a se comprometer com os resultados do pleito, como já havia feito em duas ocasiões diferentes nos últimos dias. "Exorto meus apoiadores a irem às urnas e fiscalizarem com muito cuidado. Espero que seja uma eleição justa, se for uma eleição justa estou 100% dentro. Mas se eu vir dezenas de milhares devotos sendo manipulados, não posso concordar com isso".
Trump tem atacado sistematicamente o sistema de votos por correio, embora não haja evidências de que esse sistema, já usado há décadas no país, seja mais inseguro do que o voto pessoalmente.
Durante o debate, Trump disse que os resultados levarão meses para sair e que os americanos terão que confiar na Suprema Corte para ter uma resposta definitiva sobre quem será o presidente do país nos próximos quatro anos.
No último fim de semana, o presidente indicou a juíza conservadora Amy Barrett para o colegiado de nove magistrados que formam a mais alta instância do Judiciário americano. Se Barrett for aprovada pelo Senado antes das eleições, como parece provável, ela pode ser o fiel da balança a garantir um novo mandato a Trump.
Por ser um evento ao vivo, em que o candidato se vê sozinho diante de milhões de espectadores e de perguntas espinhosas, no mundo dos profissionais das campanhas políticas, os debates são conhecidos como eventos com alto potencial destruidor e baixa capacidade de melhorar a posição de um candidato, especialmente se ele for o líder nas pesquisas eleitorais.
Exatamente por isso, para Trump, o debate era uma oportunidade fundamental: em média cerca de sete pontos atrás nas sondagens nacionais, ele tinha a chance desmontar a figura de conciliador e unificador que Biden tem tentado construir para si nos últimos meses e ganhar alguns dos eleitores indecisos na disputa.
Até para evitar que o democrata pudesse se recusar a comparecer ao debate, onde em tese teria muito mais a perder, Trump passou meses sugerindo que Biden estava senil ou com perda de capacidade cognitiva devido aos 77 anos. E nos últimos meses, diante de boas apresentações de Biden, o presidente afirmou que pediria teste antidrogas para o rival, para saber se seu desempenho não estava sendo impulsionado por algum aditivo.
A estratégia, no entanto, pode ter tido um lado negativo para o próprio Trump. Ao tratar o rival como mentalmente incapaz, o presidente estabeleceu parâmetros muito baixos de sucesso para Biden, que não é conhecido por ser um grande debatedor. Embora parecesse meio perdido e lento, o democrata não cometeu gafes nem disse coisas incoerentes, o básico para qualquer candidato. Sua performance, no entanto, pode ter superado as expectativas negativas que Trump alimentou no eleitorado.
Além disso, a agressividade e a verborragia de Trump eram esperadas, embora não no grau mostrado essa noite. Em 2016, ele já havia usado o mesmo ferramental contra a então candidata democrata Hillary Clinton, com sucesso.
Mas naquele momento ele era um empresário se aventurando na política e apontando para as falhas que via no sistema político. Dessa vez, tendo que defender sua administração e convencer os eleitores de que o atual presidente segue sendo a solução para seus problemas cotidianos, Trump pode não ter tido sucesso na mensagem.