Postado às 08h19 | 04 Mai 2021
O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, está sob pressão cada vez maior da comunidade internacional e da ala esquerda de seu partido para tornar menos rigorosas as patentes e as regras de propriedade intelectual aplicadas às vacinas contra a Covid, com o objetivo de aumentar o fornecimento de vacinas para lugares afligidos pelo vírus como a América do Sul e a Índia.
As empresas farmacêuticas e de biotecnologia, também sob pressão, agiram nesta segunda-feira para impedir esta medida, que poderia reduzir os seus lucros futuros e prejudicar o seu modelo de negócios. A Pfizer e a Moderna, duas grandes fabricantes de vacinas, anunciaram ambas medidas para aumentar o fornecimento de vacinas em todo o mundo.
A questão está chegando a um ponto crítico, e o Conselho Geral da Organização Mundial do Comércio, um dos mais altos órgãos de decisão dentro da OMC, se reúne para debatê-la na quarta e quinta-feira. A Índia e a África do Sul pressionam para que o órgão revogue um acordo internacional de propriedade intelectual que protege os segredos comerciais farmacêuticos. Os Estados Unidos,o Reino Unido e a União Europeia barraram o plano até agora.
Dentro da Casa Branca, os conselheiros de saúde do presidente admitem que estão divididos. Alguns dizem que Biden tem a obrigação moral de agir e que é uma decisão política ruim o presidente ficar do lado dos executivos farmacêuticos. Outros dizem que revelar segredos comerciais bem guardados, mas altamente complexos, não ajudaria em nada o fornecimento global de vacinas.
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— Para a indústria, isso seria um precedente terrível, terrível — disse Geoffrey Porges, analista do banco de investimento SVB Leerink. — Seria muito contraproducente, ao extremo, porque o que diria à indústria é: “Não trabalhe em nada com que realmente nos importamos, porque se você fizer, vamos simplesmente tirar isso de você”.
O médico Anthony Fauci, o principal conselheiro médico de Biden para a pandemia, disse em uma entrevista na segunda-feira que os próprios farmacêuticos devem agir, seja aumentando a sua capacidade de produção para abastecer outros países a“ um preço extremamente reduzido ” ou transferindo a sua tecnologia para permitir que o mundo em desenvolvimento faça cópias baratas das vacinas. Ele disse que não se posicionaria sobre uma suspensão das patentes.
— Eu sempre respeito as necessidades das empresas de proteger seus interesses para sustentar seus negócios, mas não podemos fazer isso impedindo que a vacina que salva vidas chegue às pessoas — disse Fauci. — Você não pode permitir que pessoas morram em todo o mundo porque não têm acesso a um produto ao qual os ricos têm acess.
Para Biden, o debate sobre a suspensão é um problema político e prático. Como candidato presidencial, ele prometeu ao ativista liberal de saúde Ady Barkan, que tem esclerose lateral amiotrófica, o que se comprometeria de modo "absolutamente positivo" a compartilhar tecnologia e acesso a uma vacina contra o coronavírus se os Estados Unidos desenvolvessem uma primeiro. Os ativistas planejam lembrar Biden dessa promessa durante um comício agendado para quarta-feira.
— Ele não está sendo ousado nisso — disse Gregg Gonsalves, epidemiologista de Yale que travou batalhas semelhantes durante a crise da Aids nas décadas de 1980 e 1990, e deve falar no comício. — Eles disseram isso também durante a epidemia de Aids. Todas essas mesmas desculpas vêm de 20 anos atrás.
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A proposta da Índia e da África do Sul isentaria os países membros da Organização Mundial do Comércio de aplicar algumas patentes, segredos comerciais ou monopólios farmacêuticos segundo o acordo do órgão sobre direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio, conhecido como Trips. A ideia seria permitir que as empresas farmacêuticas de outros países produzissem ou importassem cópias genéricas baratas das vacinas.
Os defensores dizem que a suspensão liberaria inovadores em outros países a buscarem suas próprias vacinas contra o coronavírus, sem medo de sofrerem processos de violação de patente. Eles também observam que a isenção proposta vai além das vacinas e abrangeria a propriedade intelectual de medicamentos e de suprimentos médicos.
— Muitas pessoas estão dizendo: “Eles não vão precisar da receita secreta?” Esse não é necessariamente o caso — disse Tahir Amin, fundador da Iniciativa para Medicamentos, Acesso e Conhecimento, uma organização sem fins lucrativos dedicada a eliminar as desigualdades em saúde. — Há empresas que acham que podem seguir sozinhas, desde que não temam que vão tomar a propriedade intelectual de alguém.
A indústria farmacêutica rebate que mudar proteções à propriedade intelectual não ajudaria a aumentar a produção de vacinas. Ela diz que outras questões impedem levar as vacinas ao mundo todo, incluindo acesso a matérias-primas e desafios de distribuição no local.
E, tão importante quanto ter os direitos para fazer uma vacina, é deter o know-how técnico, que teria que ser fornecido por desenvolvedores de vacinas como a Pfize e a Moderna — um processo conhecido como transferência de tecnologia.
Sharon Castillo, porta-voz da Pfizer, disse que a vacina da empresa requer 280 componentes de 86 fornecedores em 19 países; também precisa de equipamento e pessoal altamente especializados, e de transferências de tecnologia complexas e demoradas entre parceiros e redes globais de fornecimento e manufatura.
— Achamos que não é realista pensar que uma suspensão de patentes facilitará uma aceleração tão rápida a ponto de resolver o problema de abastecimento — disse ela.
Na segunda-feira, o presidente-executivo da Pfizer, Albert Bourla, disse no LinkedIn que sua empresa doaria imediatamente mais de US$ 70 milhões em medicamentos para a Índia e que também está tentando acelerar o processo de aprovação da vacina na Índia. A empresa também postou no Twitter a promessa de “o maior esforço de ajuda humanitária da História de nossa empresa para ajudar o povo da Índia”.
A Moderna, que desenvolveu sua vacina com financiamento de contribuintes americanos, já disse que não iria “impor as suas patentes relacionadas à Covid-19 contra aqueles que fabricam vacinas destinadas a combater a pandemia”. Mas os ativistas têm pedido não apenas pela isenção de patentes, mas também para que as empresas compartilhem a própria experiência na instalação e na operação das fábricas de vacinas — e para que Biden as pressione para fazer isso.
No mês passado, mais de 170 ex-chefes de Estado e ganhadores do Nobel, incluindo o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso; Gordon Brown, ex-primeiro-ministro britânico; Ellen Johnson Sirleaf, ex-presidente da Libéria; e François Hollande, ex-presidente da França, publicaram uma carta aberta pedindo a Biden que apoiasse a suspensão proposta.
No Capitólio, 10 senadores, incluindo Bernie Sanders, independente de Vermont, e Elizabeth Warren, democrata de Massachusetts, conclamaram Biden a "priorizar as pessoas em vez dos lucros das empresas farmacêuticas" e reverter a oposição do governo Trump à suspensão. Mais de 100 democratas da Câmara assinaram uma carta semelhante.
—Esta é uma das principais questões morais de nosso tempo — disse o deputado Ro Khanna, democrata da Califórnia. — Negar a outros países a oportunidade de fazer suas próprias vacinas é simplesmente cruel”.
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Katherine Tai, representante comercial de Biden, realizou mais de 20 reuniões com várias partes interessadas — incluindo ativistas globais de saúde, executivos farmacêuticos, membros do Congresso, o dr. Fauci e o filantropo Bill Gates — nas últimas semanas para tentar traçar um caminho a seguir.
“A embaixadora Tai reiterou que a principal prioridade do governo Biden-Harris é salvar vidas e acabar com a pandemia nos Estados Unidos e em todo o mundo", disse o gabinete de Tai em uma declaração cuidadosamente redigida nesta segunda-feira, depois que ela falou sobre a suspensão proposta com o diretor-geral da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI), um braço das Nações Unidas.
Em uma carta à Tai no mês passado, a Organização de Inovação em Biotecnologia, um grupo comercial, advertiu contra dar “licença a outros países — alguns deles nossos concorrentes econômicos — para esvaziar a nossa base de biotecnologia que é a líder mundial, exportar empregos para o exterior e minar incentivos para investir em tais tecnologias no futuro”.
Um dos temores da indústria farmacêutica sobre a dispensa de patente para vacinas contra o coronavírus é que isso poderia abrir um precedente que enfraqueceria as proteções de propriedade intelectual de outros medicamentos, fundamentais para a forma como eles geram dinheiro.
— A indústria farmacêutica é extremamente protetora de sua propriedade intelectual — disse Aaron Kesselheim, professor de medicina da Harvard Medical School e do Brigham and Women's Hospital. — Esse tipo de resistência feroz é um reflexo da indústria farmacêutica.
Não está claro, porém, se tal ação nas circunstâncias únicas da pandemia teria implicações para as proteções de propriedade intelectual para outros tratamentos depois que a crise do coronavírus passar, disseram pesquisadores da indústria.
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Na década de 2000, alguns governos, incluindo os do Brasil e da Tailândia, contornaram as patentes detidas pelos desenvolvedores de medicamentos antivirais para HIV / Aids, em um esforço para abrir caminho para versões genéricas baratas dos tratamentos.
Os medicamentos para o HIV, no entanto, envolvem um processo de fabricação muito mais simples do que as vacinas contra o coronavírus, especialmente aquelas que usam a tecnologia de RNA mensageiro, que nunca foi usada antes em um produto aprovado.
Em um tópico do Twitter, Amin,da Iniciativa para Medicamentos, Acesso e Conhecimento, ofereceu outro exemplo: na década de 1980, a Merck e a GlaxoSmithKline desenvolveram vacinas recombinantes contra a hepatite B e detinham um monopólio com mais de 90 patentes cobrindo processos de fabricação. A Organização Mundial de Saúde (OMS) recomendou a vacinação para crianças, mas esta era cara — US$ 23 a dose — e a maioria das famílias indianas não tinha dinheiro para comprá-la.
O fundador da Shantha Biotechnics, um fabricante indiano, foi informado de que “mesmo se você puder adquirir as tecnologias, seus cientistas não conseguirão entender o mínimo da tecnologia recombinante”, escreveu Amin.
Mas a Shantha, acrescentou ele, foi em frente mesmo assim e produziu “o primeiro produto recombinante caseiro da Índia a US$ 1 a dose". Isso permitiu ao Unicef realizar uma campanha de vacinação em massa.