Postado às 06h18 | 19 Mar 2020
Igor Gielow
A sucessão de erros táticos de Jair Bolsonaro desde que a continuada crise com os Poderes foi atropelada pela emergência do coronavírus mostra o presidente em seu momento de maior fragilidade política desde que assumiu.
Os equívocos se avolumaram à medida que se transformaram em uma só onda o embate com o Congresso e com o Supremo Tribunal Federal e a chegada da pandemia.
O teatro de máscaras encenado por Bolsonaro e equipe na tarde desta quarta (18) coroou a tardia queda da ficha, para usar uma metáfora do tempo do orelhão, do presidente em relação ao tamanho do problema.
Já o rufar de panelas capitais afora à noite mostrou que talvez a antiga maestria em influenciar narrativas, para ficar num clichê dos nossos tempos, tenha enfim se perdido ao menos num certo estrato de classe média urbana.
Vêm à mente as críticas da esquerda aos “paneleiros” que protestavam contra Dilma Rousseff (PT) antes de o impeachment da presidente tomar corpo.
O susto foi tomado por Bolsonaro na véspera, quando o anunciado movimento de quarta ganhou vida, inclassificável como uma reação apenas do que sobrou da esquerda. Até por isso talvez ele tenha admitido que se tratava de uma “expressão da democracia”.
Bolsonaro até tentou virar o jogo do dia, ao inventar ao vivo um protesto em seu favor na sequência daquele desta quarta, como se fosse mensurável a panela que ecoa às 20h30 daquela que é batida à 21h.
Ouvi-lo cobrar que a mídia anunciasse ambos os eventos como se fossem da mesma natureza pode ter funcionado para seus seguidores mais fiéis, mas soou como um certo alheamento da realidade, exagerado mesmo para os padrões usuais do mandatário máximo.
O simplismo só foi superado pela ideia de convidar os chefes da Câmara, Senado e Supremo para fumar o cachimbo da paz na hora do protesto, com forma a dividir o risco do panelaço.
Isso um dia depois de o filho presidencial Flávio, senador pelo Rio e nervo exposto do clã na seara das investigações policiais, postar no Twitter que Rodrigo Maia deveria checar se havia sido eleito presidente do país para dar palpites.
Como o momento é de crise, Dias Toffoli (STF) foi —Davi Alcolumbre (Senado) acabara de receber o diagnóstico de infecção pelo vírus. Maia estava liderando votação de medidas emergenciais, mantendo seu papel proativo sem dividir a mesa com o presidente.
Ao adiantar o encontro para as 19h, o presidente apenas ganhou uma prévia do panelaço previsto para 20h30. Este foi bastante forte, e silenciou antes da réplica bolsonarista, que logrou apoios pontuais Brasil afora, embora atraísse respostas contrárias também.
A incúria no trato da pandemia pelo presidente somou-se à aposta com ares definitivos em seu nicho mais radicalizado —o “povo” com que ele não teria problema de dividir um coronavírus ou dois, seja na frente do Planalto, no metrô paulistano ou numa barca fluminense.
Bolsonaro tornou-se o negacionista perfeito, tanto da boa ciência quanto da harmonia entre os Poderes. No segundo caso, ainda é possível entender que ele foi eleito pela rejeição ao “tudo o que está aí” e precisa manter acessa essa brasa.
Na entrevista desta quarta, Bolsonaro disse que seus apoiadores são o “exército dos democratas do Brasil”, numa frase que emula o “exército de Stédile” lembrado por Luiz Inácio Lula da Silva (PT) quando Dilma estava em apuros.
Os sem-terra de João Pedro Stédile nunca mudaram a história. Em favor de Bolsonaro, seu séquito o segue por convicção, mas a amplitude da categoria parece cada dia menor.
Já no primeiro caso, o da ciência, as panelas sugerem que a fatura já está sendo cobrada. A pandemia se desenrolou como epidemia na China durante todo janeiro, e a Europa veio a seguir, com a escalada dramática na Itália.
Para o leigo, maioria em qualquer eleitorado, houve letargia ou coisa pior, personificada na insistência com que o presidente tratava o tema como se fosse menor.
Na economia, isso foi certo: o próprio ministro Paulo Guedes admitiu candidamente em entrevista à Folha que sua equipe estava preocupada com reformas, não com doenças. Uma afirmação algo chocante para quem se apresenta como a face cosmopolita e antenada de um governo provinciano.
É possível argumentar que nenhum governo estadual fez o mesmo, mas as reações desde que a pandemia bateu às portas brasileiras foi de seriedade em relação à crise, com graus diferentes de eficácia nas medidas.
Mas não se viu nenhum governador dizendo que a culpa pela histeria mundial era da mídia, tal como fez Bolsonaro.
Essa fase está superada. O pacote de Guedes somado ao decreto da calamidade, temperado pelos teatros de Bolsonaro, recolocaram o governo numa linha mais propositiva.
A questão, como atestam as panelas, é saber se há credibilidade política residual. A intensidade do panelaço desta quarta, o maior desde o biênio 2015-2016, coloca em dúvida isso.
Isso num momento agudo. Não há como haver combate nesta etapa inicial da pandemia que não envolva todas as instâncias de poder. Isso teoricamente poderia favorecer Bolsonaro, já que no Brasil todos os ônus e bônus são direcionados à conta presidencial.
Mas o azedume da classe média, somado às pontes queimadas pelo presidente no seu fiapo de relação com o Congresso, parece mais abrir porta para outros receptores do que sair dessa tragédia.