Postado às 10h32 | 17 Nov 2020
Diário de Notícias, Portugal
Em resposta a um pedido de Richard Nixon para comentar a Revolução Francesa, o primeiro-ministro Zhou Enlai terá respondido "ainda é cedo para avaliar". Sabe-se hoje que o delicioso episódio ocorrido durante a histórica visita a Pequim em 1972 é de certa forma falso, pois o intérprete do presidente americano veio há pouco tempo esclarecer que tudo não passou de um mal-entendido, já que o primeiro-ministro chinês achou que Nixon se referia ao Maio de 68 e não aos acontecimentos de 1789. Mas, como dizem os italianos com certa graça, se non è vero, è ben trovato, pois exemplifica a proverbial paciência chinesa, e afinal uma civilização com mais de 3000 anos não se pode basear numa ideia de pressa.
Ora, pressa não teve também Xi Jinping em reconhecer a vitória de Joe Biden nas presidenciais americanas, o que só aconteceu nesta sexta-feira, dez dias após a votação e seis depois de as cadeias televisivas anunciarem que o candidato democrata tinha mesmo derrotado Donald Trump. Não terá sido por torcer pelo presidente republicano que a reação de Pequim demorou, tendo em conta que Trump fez da luta para travar a ascensão da China a prioridade do seu mandato, com a guerra comercial a ser apenas a frente de batalha mais visível.
Mas com Biden presidente a partir de 20 de janeiro de 2021, a tal luta dos Estados Unidos para atrasar o regresso da China à primeira posição mundial (já lá vamos) mudará, quando muito, na aparência, não no essencial. Há muito que os Estados Unidos perceberam que o desafio à sua supremacia virá do Pacífico e não do outro lado do Atlântico. Barack Obama, talvez não por acaso o primeiro presidente nascido no Havai e que até viveu na juventude na Indonésia, foi claro nesse sentido ainda antes da chegada de Trump à Casa Branca, e Biden foi durante oito anos o vice de Obama.
Falei já da Revolução Francesa e a ela volto para sublinhar que apenas quatro anos depois, esse 1793 em que Luís XVI foi executado, a China era ainda uma grande potência a todos os níveis, a ponto de humilhar a embaixada britânica encabeçada por Lord McCartney. Mas depois de Qianlong, o último dos grandes imperadores Qing, a dinastia começou a definhar e passado meio século eram os britânicos a humilhar a China e a conquistarem a ilha de Hong Kong.
Se pensarmos que o reinado de Qianlong coincidiu não só com a Revolução Francesa como também com a guerra da independência americana, será útil notar que a China valia então um terço do PIB mundial, os Estados Unidos talvez 1%, segundo os notáveis cálculos do falecido historiador britânico Angus Maddison. E foi preciso a morte de Mao Tsé-tung, que estabilizou a China sob o pulso forte do Partido Comunista, e a política de abertura económica de Deng Xiaoping, um reformista que só sobreviveu às purgas porque Zhou o protegia, para a China iniciar uma recuperação tremenda que a conduziu em 40 anos à segunda posição na hierarquia das economias, só faltando mesmo ultrapassar os Estados Unidos. Em 2020, o PIB chinês será de 14,8 biliões de dólares (os trillions anglo-saxónicos) e o americano de 20,8, com os efeitos da pandemia de covid-19 a favorecerem a aproximação entre ambos no próximo ano.
Ainda é grande a vantagem americana, e a vários níveis: o orçamento militar anual dos Estados Unidos é mais do que o dobro do chinês, o armamento também é superior (desde o arsenal nuclear aos porta-aviões), a economia dos Estados Unidos, quando vista em termos de rendimento por habitante, é claramente mais próspera do que a chinesa, o softpower também favorece os americanos, com a língua inglesa a potenciar Hollywood e a música pop e rock, e as universidades da Ivy League a baterem em todos os rankings as de Pequim e Xangai. Vantajosa também é a posição estratégica dos Estados Unidos, por causa dos vizinhos, esses Canadá e México com os quais teve as últimas guerras no século XIX, enquanto a China enfrenta uma vizinhança ainda hoje hostil, da Índia ao Japão.
A favor dos Estados Unidos joga também a rede global de alianças, desde a NATO desprezada por Trump até às parcerias com o Japão, a Coreia do Sul e a Austrália. Sobretudo a influência americana no Pacífico tem grande peso na hora de conter as ambições territoriais chinesas, seja no mar da China do Sul seja sobre Taiwan (a ilha nacionalista contou neste mandato de Trump com um apoio americano extraordinário, que dificilmente Biden manterá ao mesmo nível se quiser ter alguns canais de diálogo com Xi).
Biden, que como vice de Obama coincidiu com Xi como vice de Hu Jintao e depois já presidente, tem uma boa experiência pessoal com o líder chinês. Já andaram juntos na China e na América. Garantidamente, Biden falará de uma forma muito mais educada com os governantes de Pequim, assim como com os do resto do mundo, o que, por ironia, não será 100% positivo para a China. O tom agressivo de Trump, assim como o seu isolacionismo e até abandono de iniciativas como o Acordo de Paris sobre o Clima, acabavam por beneficiar a China, interessada em ser vista como a potência fiável.
Como se tem visto com as pressões diplomáticas americanas sobre os europeus para renunciarem à tecnologia 5G da Huawei, a competição entre os Estados Unidos e a China é global. A estratégia de Uma Faixa, Uma Rota tem permitido à China alargar influências a zonas como a América Latina, consideradas estratégicas para Washington. Mas é evidente que a haver um dia um conflito militar entre americanos e chineses, cenário que nenhum dos lados deseja, será na Ásia. Desde Taiwan à Austrália, passando por Índia, Vietname e até Japão, são vários os países que se armam pensando nesse choque entre poderosos.
A aproximar os Estados Unidos de Biden e a China de Xi estão, apesar de tudo, temas como o combate às alterações climáticas e contenção da capacidade nuclear da Coreia do Norte. Num dos casos, Biden tem tudo a acrescentar depois do negacionismo de Trump, no outro é difícil prever como lidará o novo presidente com Kim Jong-un depois de o antecessor ter promovido cimeiras. De qualquer forma, o clima será tratado a nível multilateral, e o nuclear de Kim exigirá que se ouça a Coreia do Sul. Joe Biden também poderá ser mais colaborante com Xi na busca de soluções para a pandemia, invertendo o papel da covid-19, até agora arma de arremesso entre os dois países e até com teses conspiratórias pelo meio.
Única certeza: se algo une ainda democratas e republicanos numa América dividida ao máximo, é a visão da China como rival, um rival com recursos que a União Soviética nunca teve, muitos menos a Rússia atual. E com Biden na Casa Branca a paciência com a China - aí sim uma diferença de peso com Trump - será bem menor também no que diz respeito aos direitos humanos.