Postado às 06h30 | 25 Mar 2020
Hoje não se pode mais cantar o “mundo maravilhoso” de Louis Armstrong, com exaltação às cores do céu, das árvores, do arco-íris, ao beijo abençoado do dia e a escuridão sagrada da noite. De repente, o risco de uma “contaminação muitas vezes fatal” atinge, de forma igualitária, a parcela dos 1% mais ricos do mundo e 60% da população mundial, que vive na miséria absoluta.
De que valeram os avanços tecnológicos e a riqueza acumulada, se o “dom da vida” – presente de Deus – está sob ameaça?
Quando o “cinto aperta”, vozes em coro pedem socorro aos governos. Não se pode deixar de registrar gestos de solidariedade da população em geral. Em Natal, mobilização de empresários garantiu a doação de vários respiradores. Entretanto, a realidade mostra a necessidade de mudanças futuras, de forma a dotar o Estado de meios instantâneos para enfrentar calamidades públicas.
Aí surge o debate sobre o tipo de Estado, que garanta ao cidadão os seus direitos mínimos. O principal deles é o direito à saúde. Está provada a fragilidade do modelo apocalíptico de “capitalismo”, com o “deus mercado” amedrontando a própria atividade econômica, diante da ausência de poder regulador.
A consequência natural, após a pandemia, será o surgimento de um “novo capitalismo”, alicerçado no “Estado necessário” (nem mínimo, nem máximo), capaz de numa crise como a atual, exercer as suas funções de controle social, salvando vidas, mantendo empregos e ajudando os mais pobres.
Se olharmos a história econômica, a crise de 1995 teria sido a oportunidade de mudanças na ordem econômica e social, quando o mundo enfrentou a recessão dos “mercados emergentes”, com uma série de ataques especulativos aos sistemas monetários, atingindo até economias sólidas como os “tigres asiáticos”.
Já àquela altura existiam sinais e evidencias, de que a globalização se transformava em “financeirização”, gerando instabilidade às economias, vulnerabilidade às populações e o aumento do fosso da desigualdade social, epidemia tão grave quanto o “coronavirus”.
Os governos, ao invés de aproveitarem a ocasião e reformularem as práticas vigentes, optaram por abrir os cofres e salvar os mais ricos, tudo em nome da eficiência fiscal (monetarismo). Como diz o provérbio árabe, “não se recupera a oportunidade perdida”.
Só no Brasil, em valores da época, a União injetou nada menos do que R$ 16 bilhões de dinheiro público em bancos privados (Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional). Foram esquecidos os direitos e gastos sociais, quando as duas ações teriam que ser simultâneas.
Repetiram-se os mesmos erros em 2008, na maior recessão ocorrida no capitalismo americano, desde a grande depressão de 1929. O governo voltou a “salvar” os bancos, com socorro de cerca de 30 trilhões de dólares. Os clientes com as suas casas hipotecadas foram morar “em baixo das pontes”. Como reflexo, o Ibovespa teve baixa de 41.22%.
A esperança é que os equívocos cometidos no passado ensejem reflexões e abram perspectivas de reformulações futuras, sempre preservadas as liberdades, a qualquer custo. Não se poderá perder a oportunidade de redistribuir a renda e riqueza. Afinal, o nosso país convive com estatísticas alarmantes: 10% dos mais pobres gastam 32% de sua renda em tributos, enquanto os 10% mais ricos gastam apenas 21%. São 45 milhões de brasileiros pobres, que ganham menos de US$ 5 por dia.
A redução da desigualdade (epicentro de todo o problema) incentiva a empresa assumir compromisso social, além de garantir a “dignidade da pessoa humana”, o que aliás é princípio da Constituição (art. 1°, III). Tal ótica, não significará igualdade de classes, negativa do direito ao lucro legítimo, ou desestimulo ao empreendedorismo.
Para que se alcance tais objetivos, não haverá como apostar nos extremismos – de direita ou de esquerda -, que trazem consigo o perigo do surgimento de “redentores”, “salvadores da pátria”, que poluem a democracia e restringem as liberdades. O estado democrático debilitado, “escancara portas” para o autoritarismo e ações impunes de especuladores, que farejam oportunidades, conspirando contra o interesse público.
Deus queira, que o economista português Manoel Alberto Maçães tenha razão, ao dizer que “o mundo parecerá muito diferente do outro lado do túnel em que acabamos de entrar”. Resta apenas saber, se aprenderemos a lição da pandemia!