Postado às 05h24 | 06 Set 2022
Ney Lopes
O Chile disse não à nova Constituição.
A derrota no plebiscito de domingo ocorreu por uma margem esmagadora: quase 62% para a "rejeição" contra 38,1% para o "eu aprovo".
Os prognósticos mais pessimistas não previam tal resultado..
Pela importância do Chile na geopolítica latino-americana, quais serão as consequencias?
Em primeiro lugar, não considero catástrofe, proximidade do caos, ou porta aberta para surgimento de regime autoritário.
Ao contrário, a nação chilena poderá demonstrar exemplar firmeza democrática, construindo alternativas futuras.
Salvo mudança de comportamento, o jovem presuidente Gabriel Boric, militante da esquerda, fez pronunciamento de equilíbrio político.
Disse ele, que a primeira mensagem popular foi de que a cidadania valoriza sua democracia e, a segunda, que “não ficou satisfeita com a proposta de Constituição que a Convenção Nacional apresentou ao país"
Completou: “Como presidente, aceito esta mensagem com grande humildade e a faço minha. Devemos ouvir a voz do povo, não apenas neste dia, mas em tudo o que aconteceu nestes últimos anos intensos que vivemos”.
Numa hora, em que a abertura para um grande diálogo é a única solução possível, não se pode deixar de considerar avanço a posição assumida por Boric, elogiada por seus adversários.
Essa poderá ser a grande oportunidade dos chilenos repetirem 1988, quando nasceu o pacto de união nacional, conhecido como “Concertación de Partidos por la Democracia”, que uniu siglas da esquerda à direita.
No ano seguinte, esse grupo elegeu o primeiro presidente após Pinochet, Patricio Aylwin Azócar, democrata-cristão e a nação se estabilizou.
Entretanto, o modelo ainda herdado de Pinochet, de prioridade total ao mercado, progressivamente aumentou a desigualdade social.
O sistema previdenciário privado foi um desastre.
A classe média estrangulou-se.
Em outubro de 2019 transbordaram grandes protestos populares nas ruas contra desigualdades e má qualidade dos serviços públicos.
O povo não suportava mais a prioridade dada ao econômico e o esquecimento do social.
Daí a esmagadora aprovação de referendo popular, à época, para eleger uma Assembleia Constituinte, a fim de reescrever a Carta Magna, redigida originalmente durante a ditadura militar, em 1980, emendada mais de 60 vezes.
Realmente, a Constituição apresentada no plebiscito de domingo continha muitos excessos.
Faltou maturidade política aos constituintes.
Cabe lembrar que a escolha dos constituintes, em maio do ano passado, se deu em plena pandemia.
O comparecimento foi de apenas 43% dos eleitores, portanto pouco representativo da sociedade chilena.
Mais de dois terços dos constituintes eleitos eram independentes, muitos deles novatos na política e ativistas de extrema esquerda.
O resultado é que prevaleceram os extremismos da chamada “nova esquerda”, transformando a Carta Magna em declaração ideológica e não Carta de princípios, que unisse as várias tendências sociais.
Temas como o aborto, que deveria ser objeto de lei posterior, integraram o texto da Constituição, gerando polêmica.
Em relação à legislação trabalhista, o novo texto constitucional representava uma revolução, ampliando direitos dos trabalhadores, esquecendo a regulação necessária entre capital e trabalho.
O curioso é que o Chile tem tradição de pouca presença do eleitorado nas eleições
Porém, neste referendo do último domingo a participação nas urnas foi recorde — 13 milhões de eleitores.
Até agora, não há sinais de violência e a rejeição da Constituição é assimilada pela população.
Anuncia-se que já está sendo aberto novo processo constitucional, a começar pelas conversas do presidente Boric com os partidos políticos.
Deverá ocorrer uma simbiose de várias ideias, mantendo a paridade de gênero, a visão feminista e o respeito às minorias e aos povos originários, além de maior clareza sobre o setor privado e seus limites.
É bom lembrar, a permanência das mesmas demandas sociais de 2019, que deram origem ao processo constituinte, como saída para a crise.
Isso faz com que não desapareçam ameaçaa de novas revoltas.
Somente o bom senso e a ponderação, a partir do presidente Boric e partidos políticos, evitarão abalos institucionais.
A queda da Constituição submetida a plebiscito não significou vitória da direita.
Apoiadores de Boric do centro-esquerda, entre eles o ex-presidente Ricardo Lagos (2000-2006), alertaram desde o início que o texto elaborado não uniria o Chile.
Espera-se que o país marche para consolidar a democracia na América Latina e dê lições ao mundo, de que essa é a única forma de associação política, capaz de manter a paz e as liberdades.