Postado às 09h47 | 09 Mai 2021
Mario Vargas Llosa, O Estado de S.Paulo
Neste ano e pouco de confinamento, li muitos textos sobre o coronavírus, é claro, mas nenhum como o de Carmen Iglesias, intitulado História de las Pandemias, umas 20 páginas em que não há uma linha que se possa desperdiçar e, além de traçar uma síntese extremamente precisa de como as pestes e as epidemias coletivas acompanham a história da Europa, as organiza para tirar conclusões otimistas e civilizadoras sobre esta praga e suas variantes – a britânica, a australiana, a brasileira, a indiana – que, temos a impressão, estão devastando a Europa (e o restante do mundo também).
Iglesias nos lembra de que o poema fundador de Homero, a Ilíada, descreve a mortandade que cai como castigo divino sobre os aqueus e como vingança de Apolo pelo sequestro da filha de um dos sacerdotes. Desde então, a literatura dará testemunho daquelas incompreensíveis devastações que semearam o horror por todos os cantos da terra, que as gentes que não entendiam nada do que acontecia a seu redor, salvo que as pessoas morriam como moscas, atribuíam a um castigo dos deuses pelos pecados dos homens.
Buscaram-se bodes expiatórios. E, entre eles, evidentemente, os judeus, as bruxas, os magos, todos aqueles que eram diferentes e constituíam alguma forma de marginalidade. Quantas fogueiras e vítimas a ignorância causava!
Tucídides é o primeiro historiador que descreve, na História da Guerra do Peloponeso, com rigor e sem atribuir responsabilidade alguma aos deuses, a peste que destruiu Atenas no ano 430 antes da era cristã. Desde então, há documentos históricos que dão conta destes cataclismos periódicos humanos que vão devastando todas as civilizações conhecidas, desde as mais estáveis e firmes, como o Império Romano nos tempos de Marco Aurélio (uma das vítimas da calamidade) e o Império Bizantino, do imperador Constantino, destroçado pela peste bubônica, até uma Idade Média arrasada pelo cólera, o tifo, a disenteria, a febre amarela e outras pestes.
E, caberia acrescentar, após longos anos, pelos ginetes mongóis que invadem a Europa, não só com facas em busca de gargantas, mas também que tiram de seus alforjes todas as enfermidades e pandemias asiáticas que semeiam por toda parte as famosas “pestilências” das quais nos falam os romances de cavalaria.
Na Europa Central, chega-se a inventar, naqueles anos terríveis, o “cavaleiro apocalíptico” que vai de cidade em cidade, de aldeia em aldeia, distribuindo as enfermidades que acabam com as pessoas e mandam suas almas para queimar no inferno. A geografia das cidades transforma-se em função das pandemias, pois os sobreviventes de cada onda das epidemias se adaptam a estas mudanças e fundam novos povoados e cidades, fugindo dos desconhecidos e invisíveis agentes do demônio que, como é o caso da lepra, destroem pouco a pouco o organismo das pessoas infectadas, antes de matá-las.
A passagem do tempo não dá sossego aos habitantes da Europa. Com as pestes, explodem “as superstições e os absurdos”. Mas também se incrementa o espírito religioso, muitas das longas procissões que ainda percorrem as ruas europeias nasceram para combater com as orações dos fiéis, sacerdotes e pastores os “castigos do céu” que chegavam à Terra na forma de enfermidades coletivas.
A mudança de clima suscita, às vezes, transtornos espetaculares na vida das cidades. É o que ocorre durante os cinco séculos que ficaram conhecidos como “a pequena Idade do Gelo, tempos em que se chegou a dizer que era impossível compreender as variantes entre as temperaturas quentes e as geladas que a Europa experimentava, e nas carestias que elas provocavam, como ocorreu entre 1315 e 1316, em que os países europeus foram literalmente dizimados pelas súbitas perturbações da atmosfera. Morreram tantos milhares de famílias como nas piores pandemias de que se tem memória.
E, no entanto, apesar desta tradição destrutiva, é possível dizer que a humanidade foi aprendendo e daquelas atrocidades resultaram extraordinárias descobertas nos campos do conhecimento, sobretudo no da medicina e nos sistemas de saúde pública. Nada como as pandemias periódicas a que o mundo se acostumou (e talvez para sempre), para criar os modernos hospitais e enfermarias, e fazer progredir as descobertas da ciência.
A covid-19 teria produzido provavelmente cem vezes mais vítimas em todo o planeta se tivesse ocorrido antes ou ao mesmo tempo da arbitrariamente chamada “gripe espanhola”, à qual se atribui a morte de mais gente do que toda a que pereceu na 1.ª Guerra. A medicina avançou de maneira prodigiosa graças à peste, o que não impede que esta continue desafiando o saber científico como foi revelado na última pandemia.
Quando acreditávamos que aquilo seria impossível nestes tempos – nos quais fomos para a Lua e vários países invadem as estrelas com suas naves espaciais, pois a natureza já não parecia guardar segredos para nossos investigadores – tivemos uma surpresa colossal. Isso devido ao fato de que, aparentemente, um homem, em uma cidade chinesa, comeu ou fornicou com um morcego, criando um vírus que deixou dezenas de milhares de mortos espalhados pelo grande mundo.
Uma das partes mais interessantes da obra de Carmen Iglesias se refere à peste como incitadora dos prazeres, que ela chama “Carpe diem”. A proximidade da morte, a atração do perigo, despertam aspectos sexuais em certos seres humanos, uma exaltação dos sentidos e uma busca irracional do prazer que transforma os palácios e castelos em bordéis de luxo onde se praticam todos os vícios e se morre de excessos antes da enfermidade.
Já Tucídides fala deste fenômeno durante a epidemia que devastou Atenas, no quarto século da era passada. A literatura foi especialmente rica em apresentar este aspecto fúnebre e cerimonial dos prazeres em tempos descentrados na narrativa chamada “gótica” ou nos pesadelos novelescos do Marquês de Sade.
Em seu ensaio, Carmen Iglesias cita com elogios o livro do historiador peruano Fernando Iwasaki, Aplaca, Señor, tu ira!. O maravilhoso e o imaginário na Lima colonial, no que diz respeito à chamada Morte Negra, o inapelável fim do mundo, que era considerado iminente e espalhava o terror e a loucura em vastos territórios, como nas distantes colônias espanholas da América.
O misterioso desaparecimento de culturas e civilizações, como a dos maias, na América Central, ou dos moches, no Peru, está relacionado indubitavelmente a este fenômeno. Embora relativamente pequeno, este trabalho deve ter tomado um bom tempo de Carmen Iglesias, para consultar velhos livros e múltiplos documentos.
Ela é uma trabalhadora discreta e pertinaz de quem costumam sair esplêndidos ensaios. Aprendi muito sobre a Espanha lendo-a. Ela dirige a Real Academia de História, é acadêmica da Real Academia Espanhola, e muitos se perguntam como faz para arranjar tempo para fazer tudo o que impõe a si mesma. Ela foi também professora de história do atual rei da Espanha, Felipe VI, e não há dúvida, ouvindo os seus discursos, de que ele aproveitou muito bem os seus ensinamentos.