Postado às 04h25 | 17 Dez 2020
Beatriz Jucá
Ministro chama de “ansiedade” e “angústia” a cobrança por um plano de vacinação em um país que conta mais de 183.000 mortes, após semanas marcadas por falta de transparência e guerra ideológica
Depois de meses vendo o Governo Bolsonaro mergulhar no negacionismo e abrir mão de um valioso arsenal do Sistema Único de Saúde (SUS) no combate à pandemia, o Brasil enfim viu uma luz no fim do túnel nesta quarta-feira. O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, ampliou o leque de vacinas consideradas no plano nacional e incluiu até a do laboratório chinês Sinovac ―já rejeitado verbalmente pelo presidente Bolsonaro, mas cuja aquisição vinha sendo requisitada por pesquisadores, governadores e prefeitos diante de uma sinalização de resultados promissores. Uma coordenação nacional da vacinação era pleiteada por todos eles. Foram semanas de cobranças sem respostas efetivas, reuniões a portas fechadas, colaboradores técnicos com microfones silenciados e informações difusas disparadas para a população a conta gotas pelo Governo. Ainda assim, um Brasil atormentado por mais de 183.000 mortes causadas pela covid-19 ouviu do ministro: “Para quê esta ansiedade, esta angústia?”.
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A declaração foi feita pelo ministro durante a apresentação oficial do plano de operacionalização da vacinação contra a covid-19 no país. Um documento “prévio” de 94 páginas já havia sido enviado a pedido do Supremo Tribunal Federal (STF) e aberto uma crise com pesquisadores do próprio corpo técnico do Ministério ―listados entre os elaboradores, mas que só viram o documento publicado na imprensa. Nenhuma menção oficial direta à intenção de adquirir a Coronavac aparecia nos documentos ou coletivas de imprensa, apesar da pressão intensa de governadores e da velocidade que a pandemia voltava a ganhar no país, com os sistemas de saúde de vários Estados funcionando no limite da sua capacidade.
O STF precisou entrar no jogo e obrigar o Governo a apresentar um plano com todas as vacinas e, depois, um prazo para iniciar a vacinação. Só então Pazuello indicou que demoraria cinco dias para fazer as vacinas chegarem aos Estados, a serem contados após registro da Anvisa e entrega aos estoques do Ministério.
Enquanto isso, seu chefe Jair Bolsonaro que já havia dito que não compraria a “vacina chinesa do Doria”― ia à televisão afirmar que não tomaria a vacina do coronavírus e que pretendia exigir um termo de responsabilidade aos que fossem ser vacinados. Bolsonaro, que jogou mais desconfiança sobre as vacinas, mudou o tom nesta quarta e pediu união. “Se algum de nós exagerou foi no afã de buscar solução”, disse. Pazuello também resolveu tentar aplacar a guerra ideológica abraçada pelo Governo do qual participa. “Qualquer fumaça ou discussão anterior ficou para trás. Todos os brasileiros receberão a vacina de forma grátis e igualitária”, afirmou.
Os sinais de que o Governo coordenará a estratégia de vacinação é um alívio para a sociedade brasileira ―que corria o risco de assistir a uma desastrosa disputa entre Estados e uma estratégia desarticulada. O próprio ministro Pazuello agora prega a união entre os três entes federativos, depois de meses com a pasta que conduz seguindo uma agenda ideológica bolsonarista ―da posição contrária às políticas de restrição de circulação implementadas pelos Estados à aposta na cloroquina (ou, como costumam dizer nas coletivas, “o tratamento precoce” que a ciência não reconhece) como ação de combate à pandemia. Diante da apatia da União, foram intensas as movimentações de governadores e prefeitos nos últimos dias em busca de um plano B para antecipar a campanha de vacinação. Pazuello parece ignorar todo este contexto ao dizer, só agora: “Não podemos abrir mão de nos tratar como um país”.
O ministro ―que já projetou várias datas para iniciar a vacinação e, nesta quarta, estimou meados de fevereiro para jornalistas e 21 de janeiro a governadores― ainda critica uma suposta onda de “desinformação” sobre a capacidade do SUS de realizar uma ampla campanha. O Brasil tem um dos maiores sistemas de saúde do mundo e um reconhecido Programa Nacional de Imunização (PNI). Tem dois potentes institutos capazes de produzir imunizantes: a Fiocruz e o Butantan ―com acordos, respectivamente, para produzir a Astrazeneca e a Sinovac. Cientes desta expertise, pesquisadores levaram as mãos à cabeça diante de uma aparente inércia e da falta de transparência do Governo nas últimas semanas. Vários deles alegam que o Brasil saiu atrasado na corrida por um imunizante e agora precisa correr atrás do prejuízo para garantir a entrega breve de vacinas e até a compra de seringas e agulhas. O Brasil planeja uma campanha de 16 meses, e os cronogramas para a chegada de cada vacina ainda são vagos.
“Vamos levantar a cabeça. Acreditem: o povo brasileiro tem capacidade de ter o maior Sistema de Saúde Único do mundo, de ter o melhor plano de vacinação”, animou Pazuello. O ministro pede a confiança de milhares de brasileiros que já viram as armas do SUS serem desperdiçadas neste ano. Um exército de agentes de saúde, presente em praticamente todos os municípios, não foi aproveitado em uma estratégia coordenada de rastreio de casos para frear contágios. O Brasil tampouco conseguiu implementar políticas eficazes no controle da pandemia, mas tem sim um SUS forte e um PNI robusto.
Os anúncios desta quarta-feira foram celebrados por pesquisadores, enfim ouvidos pelo ministério. Os próximos passos dependem do registro dos imunizantes na Anvisa e da capacidade do Governo de formalizar as compras e garantir entregas num contexto de escassez global e de produção ainda pequena no país, no momento iniciada apenas pelo Butantan. A Fiocruz deve começar a produção em janeiro. “Precisamos produzir mais e ter a capacidade de controlar a ansiedade e a angústia”, insiste o ministro. O Governo precisa dar respostas a um país que segue amplamente vulnerável à pandemia há quase dez meses e que vê seus profissionais da linha de frente exaustos na iminência de uma nova grande onda de contágios.