Postado às 05h16 | 18 Abr 2021
Folha
A empresária Lilian Varella, 60, se emociona ao ver o Drosophyla Bar, em São Paulo, vazio. Após oferecer, sem sucesso, um serviço de delivery, e reabrir por um curto período até janeiro, ela fechou as portas novamente. Sem clientes, viu o dinheiro que guardou nos últimos anos praticamente ir embora.
“O setor está acabado. O governo disse que em janeiro iria oferecer ajuda, mas estamos à deriva”, conta.
Para ajudar nas despesas, ela renegociou na Justiça o valor do aluguel e colocou à venda parte da mobília do bar, instalado em um casarão antigo —um sofá de seis lugares custa R$ 440; uma cadeira, R$ 350.
O aperto nas contas que Lilian teve de fazer não é um caso isolado. Ainda que os mais pobres formem a fatia mais vulnerável aos efeitos da Covid-19, com forte retração nos ganhos especialmente entre os que dependem do trabalho informal, a pandemia também impõe perdas para as camadas médias.
Oito em cada dez famílias em que o rendimento mensal com o trabalho fica acima de cinco salários mínimos perderam renda no quarto trimestre de 2020 ante igual período do ano anterior, e em termos reais, já considerada a inflação.
A maior parte desses domicílios de maior renda perdeu entre 20% e 50% do que costumava ganhar por mês, sendo que 7% dessas famílias perderam tudo o que habitualmente recebiam –ou seja, quem trabalhava naquela família ficou sem trabalho.
Os dados são da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua, compilados pela consultoria IDados. Domicílios com rendimento mensal acima de cinco salários (ou a partir de R$ 5.225, pelo valor do ano passado) são considerados das classes média, média-alta e alta.
A pesquisa, feita desde 2012 pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), permite acompanhar um domicílio por até cinco trimestres. Com a pandemia, parte dessa amostragem foi prejudicada, pois os levantamentos deixaram de ser feitos presencialmente. A perda de amostra, porém, não afetou a análise do rendimento, explica a pesquisadora da IDados Mariana Leite.
Observando os dados, Mariana avalia que é difícil prever quando esses brasileiros que perderam renda, mesmo os da classe média e média-alta, vão conseguir repor parte das perdas que tiveram nos últimos meses. “O que parece claro é que a recuperação da economia vai continuar devagar.”
Os dados mais recentes da Pnad Contínua apontam que o desemprego no país era de 14,2% no trimestre que vai de novembro até janeiro, o equivalente a 14,3 milhões de pessoas na fila por um trabalho.
Outro levantamento, feito também a partir da Pnad Contínua, mas pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), mostra que os domicílios mais ricos sofreram a maior redução proporcional na renda vinda do trabalho. Entre a classe média e a classe alta, as perdas reais foram de 1,55% a 7,44% do rendimento no quarto trimestre, respectivamente.
“As famílias enfrentam uma queda de qualidade de vida e de consumo, também pelo aumento da inflação”, diz Sandro Sacchet de Carvalho, do Ipea.
Nos últimos meses, a classe média teve de trocar os filhos de escola e rever despesas com produtos mais caros, reorganizar o seu orçamento, ele lembra. E um dos grupos mais afetados foi o dos empregadores, donos de pequenos negócios, por exemplo.
"Virei, praticamente, uma morta-viva”, conta a empresária Tita Dias, 64, sócia do restaurante paulistano Canto Madalena. Depois de fazer um empréstimo, ela recorreu às economias para que o estabelecimento não fechasse de vez. "Foi como jogar dinheiro pela janela." Com o agravamento da crise sanitária, ela optou por não oferecer o serviço de delivery, para não colocar os funcionários em risco.
“A sorte é que também sou aposentada e não dependia do restaurante para me sustentar, mas o impacto foi grande. A família teve de negociar o preço do plano de saúde e evitamos um aumento no aluguel”, diz Tita. Agora, com a fase de transição no Plano SP, iniciada neste domingo (18), ela pretende reabrir aos finais de semana, a partir de sábado (24).
O Ipea também apontou que as famílias mais afetadas pela inflação em março foram as de classe média e de média-alta. A variação de preços para esses grupos passou de 0,98% e 0,97% em fevereiro, respectivamente, para 1,09% e 1,08%, sobretudo devido ao aumento dos combustíveis.
Parte das perdas de recursos que vêm do trabalho se deu também por reflexo dos programas de redução de jornada e suspensão de contrato, que, se por um lado serviram para preservar empregos, por outro afetaram o bolso dos trabalhadores.
Para possibilitar a jornada reduzida –com consequente redução no pagamento– foi criado o BEm (Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda), que repunha parte do corte salarial. Por pressão dos empresários, que tiveram de reduzir ou suspender atividades por causa do recrudescimento da pandemia, os acordos de suspensão de contratos e redução de jornadas devem ser retomados este ano.
A pandemia mudou a vida de Patrícia Polonca, 45. Antes da quarentena, a ex-promotora organizava eventos corporativos de grande porte ao lado do marido, Gustavo, 47. Com as medidas de isolamento impostas para ajudar a conter o vírus, o mercado de eventos minguou e a família precisou se ajustar.
“A gente estava há 20 anos no mercado, mas a demanda desapareceu. Os eventos virtuais existem, mas não são a mesma coisa", afirma.
Com a nova realidade, eles trocaram os filhos Pedro, 11, e Luca, 9, de uma escola tradicional na Vila Mariana, em São Paulo, pela Luminova, na Barra Funda, pagando menos da metade na mensalidade. “Eles se adaptaram rápido às aulas online”, conta.
Patrícia também aproveitou para retornar à antiga profissão, de designer de interiores. Hoje, dá consultoria pela internet para quem faz home office e precisa adequar a casa às novas necessidades da família. O marido transformou as consultas online como terapeuta holístico, que antes ajudavam a complementar a renda, em atividade principal.
“Todo esse cenário é preocupante para a classe média, mas também é importante lembrar que o número de pessoas que ganham até um salário mínimo estão em uma situação mais frágil no mercado de trabalho”, destaca Mariana, da IDados.
As famílias mais pobres sentem perda de renda quase que de imediato, e entre as famílias que ganham até um salário mínimo e perderam renda, quase 60% perderam tudo o que ganhavam no fim de 2020, ainda segundo a IDados.
A impossibilidade de trabalhar como informal durante a pandemia, por exemplo, poderia levar facilmente uma família com menos recursos ao desamparo, sem medidas de auxílio para compensar o baque causado pela pandemia.
O pagamento do auxílio emergencial (que já foi de R$ 600 em abril passado e deixou de ser pago em dezembro, quando a parcela já era de R$ 300) ajudou a amortecer a queda na renda dos mais pobres. Para este ano, apesar do agravamento da pandemia, o benefício aos mais desamparados voltou com quatro parcelas mensais de R$ 150 a R$ 375, conforme a situação da família.