Postado às 06h44 | 13 Jul 2021
Claudio Humberto - Diário do Poder
O embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima, o mais importante diplomata brasileiro do nosso tempo, faleceu em Brasília aos 88 anos, vítima de septicemia, decorrente de uma infecção urinária muito grave. Seu corpo será velado em câmara ardente no Ministério das Relações Exteriores, em cerimônia raramente vista na história do Itamaraty a partir das 8h desta terça-feira (13).
O Brasil perde “o maior chanceler que o Brasil infelizmente não teve”, na definição do embaixador Pedro Fernando Brêtas Bastos, chefe da representação do Brasil na Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), com sede em Lisboa, cuja trajetória sofreu grande influência de Flecha de Lima, como várias gerações de diplomatas.
O diplomata que sempre teve o perfil adequado para exercer o cargo que jamais ocupou, de ministro de Estado das Relações Exteriores, Paulo Tarso nasceu em 8 de julho de 1933. Foi secretário-geral do Itamaraty entre 1985 e 1990, quando consolidou sua liderança no Itamaraty.
Ele criou uma verdadeira escola de diplomacia moderna, voltada para a defesa dos interesses do Brasil inclusive na ampliação do Brasil comércio internacional, incluindona África e entre países árabes antes fechados, como o Iraque.
Também foi embaixador do Brasil no Reino Unido, nos Estados Unidos e na Itália. Aposentou-se em 2001, após 46 anos no serviço diplomático brasileiro. Ele foi casado com Lúcia Flecha de Lima, cuja atuação como embaixatriz também teve brilho próprio, em apoio à atuação do marido embaixador.
No Reino Unido, a embaixatriz se fez amiga íntima e confidente da princesa Diana. Como embaixatriz em Roma, Lúcia e o marido mobilizaram recursos privados, de empresas italianas com interesse no Brasil e de empresas brasileirs atuando na Itália para realizar a importante obra de reforma e restauração do Palazzo Doria Pamphillij, prédio histórico de 20 mil metros quadrados, onde se localiza a embaixada do Brasil, na valorizadíssima Piazza Navona.
Estado de São Paulo
Morreu nesta segunda-feira, 12, aos 88 anos o embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima. Ele estava internado no Hospital Sírio-Libanês, em Brasília, onde teve um choque séptico. Flecha de Lima foi secretário-geral do Itamaraty, dirigiu o Departamento de Promoção Comercial e ocupou as embaixadas de Londres, Washington e Roma. Chefiou ainda a missão responsável por obter no Iraque a libertação de cerca de 400 trabalhadores brasileiros retidos pelo regime de Saddam Hussein, na Primeira Guerra do Golfo.
Era 7 de outubro de 1990 quando o embaixador viveu um dos momentos mais dramáticos de sua vida. Na Mercedes que o levou da embaixada em Bagdá para o aeroporto, Flecha de Lima e seu colega René Loncan ouviam em um toca-fitas o Va Pensiero, o coro dos escravos hebreus cativos na Babilônia, da ópera Nabuco, de Verdi. Era a hora final de uma missão que começara 23 dias antes: o resgate dos trabalhadores da construtora Mendes Júnior que Saddam Hussein pretendia usar como escudos humanos contra os bombardeios da coalizão internacional que reagiu à invasão iraquiana do Kuwait.
O diplomata conhecia o governo iraquiano como poucos no Itamaraty. Como chefe do Departamento de Promoção Comercial, ele começou a estabelecer laços com o país do Oriente Médio desde o começo dos anos 1970. Flecha de Lima estava de férias no sul da França quando recebeu a missão do Itamaraty de seguir para o Iraque. O embaixador voltou a Londres, onde era representava o Brasil, e fez as malas. Antes de chegar no Iraque, fez uma escala em Amã, onde se encontrou com o rei Hussein, da Jordânia.
Ao pousar no Iraque, começou a negociar com a diplomacia iraquiana a libertação dos trabalhadores. Além do pessoal da Mendes Júnior, um grupo de brasileiros ligados ao brigadeiro Hugo Piva também estava no Iraque assessorando o regime de Saddam na produção de material de defesa. A estratégia de Flecha de Lima foi evitar que os brasileiros saíssem aos poucos do Iraque. Queria que todos permanecessem juntos como instrumento de pressão sobre o governo iraquiano.
Ainda durante as negociações, o embaixador recebeu em Bagdá sua mulher, a embaixatriz Lúcia Martins Flecha de Lima (falecida em 2017). A chegada de sua mulher ajudou-o a acalmar os funcionários da construtora. Em entrevista publicada pelo site Poder 360, o embaixador relatou ter dito aos trabalhadores: “Olha aqui, quero dar uma prova de que a coisa está se normalizando, tanto que mandei vir minha patroa”.
No fim, o diplomata conseguiu convencer o governo iraquiano a conceder os vistos de saída aos brasileiros sem nenhuma contrapartida. Um Boeing 747 da Iraqi Airways trouxe primeiro 174 brasileiros no dia 1.º de outubro. Flecha de Lima ficou para trás. Decidiu sair do Iraque com os últimos brasileiros que deixaram o país. E assim foi. Quando o voo chegou ao aeroporto de Brasília, no dia 8 de outubro, o grupo era esperado por uma multidão de quase duas mil pessoas. A aeronave trazia 93 brasileiros, 82 dos quais trabalhadores da Mendes Júnior. “Fui direto falar com o (presidente Fernando) Collor e ele (estava) preocupado em saber como tinha sido com o rei da Jordânia e o que o brigadeiro Piva estava fazendo lá”, disse em seu depoimento.
Flecha de Lima ingressou no Itamaraty em 1955. Era o centro de um grupo restrito de diplomatas que transformou o Departamento de Promoção Comercial em uma das mais importantes estruturas do ministério. Só esse trabalho já lhe teria valido um lugar entre os grandes da diplomacia brasileira do século 20. Mas esse mineiro nascido em 1933, em Belo Horizonte, e falecido ontem, foi muito além do trabalho de promoção de nosso comércio exterior.
“Ele criou esse departamento e teve ali um papel fundamental. Sempre teve dedicação total ao Itamaraty. Era um mineiro e trazia sua origem no jeito de falar. Tratava os problemas de maneira direita. E era capaz de se ajustar às circunstâncias”, lembrou o embaixador Rubens Barbosa, que o substituiu nas embaixadas do Brasil em Londres, em 1993, e em Washington, em 1999.
Ao deixar o departamento – onde trabalhou de 1971 a 1985 –, Flecha de Lima assumiu a subsecretaria-geral para Assuntos Econômicos do Ministério. No ano seguinte, foi nomeado secretário-geral do Itamaraty, cargo no qual coordenou a adesão do Brasil aos Pactos de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos das Nações Unidas (ONU). Também esteve a frente da adesão ao Pacto de San José, de proteção aos direitos humanos na América Latina, e à Convenção contra Tortura da ONU.
No começo do governo de Fernando Collor (1990-1992), Flecha de Lima foi enviado à embaixada de Londres. Foi durante sua estadia no Reino Unido que sua mulher se tornaria amiga da princesa Diana, então casada com o príncipe Charles, herdeiro da coroa britânica. A relação entre as duas se prolongaria durante toda a década, até a morte da princesa, em Paris, em 1997.
Em 1993, Flecha de Lima deixou a embaixada em Londres e foi ocupar o posto em Washington. Durante esse tempo, o nome de Flecha de Lima volta e meia era lembrado para chefiar o Itamaraty, símbolo da amizade que o casal mantinha com políticos importantes do País, como o ex-presidente José Sarney (MDB) e o senador pela Bahia Antonio Carlos Magalhães.
Na capital americana, o casal recebia a princesa Diana na residência oficial dos embaixadores brasileiros. Durante o verão de 1994, Diana passou férias com os Flecha Lima na Ilha Martha’s Vineyard , um refúgio da aristocracia americana na costa de Massachusetts, em uma casa alugada pelo embaixador. Na época, o casamento da princesa com Charles estava em crise e Lúcia era a melhor amiga de Diana.
No fim de 1994, participou das negociações da Cúpula das Américas, em Miami (EUA), quando foi aprovada o plano para a criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), que previa a supressão de barreiras alfandegárias. O plano foi depois abandonado pelos países.
Em 1995, o embaixador sofreu um acidente vascular cerebral que limitou sua capacidade de trabalho em Washington. Mesmo assim, Flecha de Lima permaneceu no posto até 1999, quando foi para Roma. Na capital italiana, o diplomata permaneceria até 2001.
Flecha de Lima defendeu o multilateralismo até o fim. “Esse sistema é uma proteção que dilui nossas fraquezas ao obrigar as grandes nações a respeitar as regras do jogo. No momento em que os americanos quebram as regras, prevalece a lei do mais forte. E não somos nós.” Ele deixou quatro filhos e dez netos – um quinto filho morreu em 2000. O velório será amanhã no Itamaraty. O corpo será levado à Belo Horizonte, onde deve ser sepultado no jazigo da família.