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Escalada de tensão entre China e EUA alimenta medo de uma desaceleração global

Postado às 04h23 | 12 Ago 2019

“Como você vai negociar com pulso firme com o seu banqueiro?”, perguntava-se em 2009 a então secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton. Esta frase, citada em um telegrama revelado pelo Wikileaks, resumia a complicada relação de Washington com a China, que controlava a dívida pública da maior potência mundial num valor de um trilhão de dólares. Uma década depois, o país asiático aumentou ligeiramente sua carteira de bônus norte-americanos. Mas isso não impediu que o hoje presidente Donald Trump usasse todas as armas contra seu grande competidor global, que além disso continua sendo seu maior banqueiro.

Neste conflito, a China lançou mão de uma nova arma nesta semana: a taxa de câmbio. Depois do anúncio de Trump sobre novas tarifas a partir de setembro — uma alíquota de 10% para produtos chineses num valor de 300 bilhões de dólares —, Pequim respondeu pondo fim ao que até então parecia um tabu: seu banco central deixou o dólar passar da barreira psicológica de sete yuans.

Com esta (moderada) desvalorização, a China despertou o temor de que o conflito comercial, que já se transformou em tecnológico, avance para uma guerra cambial. Os especialistas consultados duvidam que se chegue a tal ponto. A China até agora conteve a queda de sua moeda, que teria sido maior sem a intervenção governamental. O dólar, por sua vez, está supervalorizado, entre 6% e 12%, segundo um relatório do FMI de julho. O yuan pode ir perdendo valor pouco a pouco, mas os analistas não esperam um desabamento brusco, porque, entre outros motivos, causaria uma fuga de capitais que ninguém em Pequim deseja.

“Não acredito que estejamos em uma guerra cambial, e sim numa espiral de represálias. Ao desvalorizar sua moeda, a China mostrou que se for preciso vai travar essa batalha com outras armas além das tarifas”, responde o técnico comercial Enrique Feás, do Real Instituto Elcano, um think-tank da Espanha. Seu colega Miguel Otero concorda: “O movimento da divisa é um pequeno detalhe em um grande jogo. O que se disputa aqui é a hegemonia geopolítica e tecnológica e a capacidade das duas potências de influírem em todos os âmbitos. Esse é o grande jogo”, acrescenta. Como exemplo, Otero acha mais importante que a Huawei acabe de lançar seu próprio sistema operacional do que a por enquanto ligeira oscilação do yuan.

Seja o início de uma série de desvalorizações competitivas ou um mero ajuste, o movimento do banco central chinês desatou uma tormenta nos mercados. No dia seguinte, a Bolsa de Nova York registrou sua maior queda do ano. E a fuga dos investidores para valores considerados seguros derrubou a rentabilidade da dívida dos EUA e Alemanha.

A probabilidade de recessão nos EUA nos dois próximos anos chega a 45%, segundo uma pesquisa com economistas

No fundo, esta nova disputa sino-americana — acompanhada da denúncia de Washington contra Pequim por manipular sua divisa e da suspensão por parte da China de compras de produtos agrícolas norte-americanos — mostra que o conflito global está longe de ser resolvido. E que ameaça contagiar uma economia global já em desaceleração e repleta de riscos. Em uma pesquisa publicada na sexta-feira pela Reuters, os economistas estimavam em 45% a probabilidade de que os EUA entrem em recessão nos dois próximos anos, 10 pontos a mais que um mês antes. A China também acusará o golpe: o Commerzbank acaba de reduzir sua previsão de crescimento para a segunda maior potência mundial por causa da batalha com a maior.

Raymond Torres, diretor de Conjuntura da Funcas, uma instituição espanhola de estudos econômicos, recorda que três dos quatro motores do mundo — EUA, China e Alemanha — já se aproximavam do fim de ciclo de crescimento, e que os últimos acontecimentos elevam a probabilidade de que essa freada das supereconomias seja mais repentina do que se esperava. As reverberações do terremoto seriam notadas em todo o mundo. Na Europa, além disso, somam-se os maiores riscos por um Brexit fora de controle e a preocupante situação da Itália.

Com a tempestade aparecendo no horizonte, cresce a pressão sobre os bancos centrais para que deem uma mão na tarefa de esquivar a recessão. Nos últimos dias, países tão distantes como Nova Zelândia, Índia, Tailândia e Filipinas cortaram suas taxas de juros. Tudo indica que o Federal Reserve (banco central dos EUA) — que também acaba de reduzir os juros pela primeira vez em 11 anos — e o Banco Central Europeu (BCE) farão o mesmo no mês que vem. “A qualificação da China como manipulador de divisas é um sério aviso para a zona do euro. Se o BCE aprovar em setembro novos estímulos, os EUA poderia inclui-lo na lista negra, aumentando a probabilidade de novas tarifas aos produtos europeus”, observa Carsten Brzeski, economista chefe do banco ING.

No fundo, a moeda não é um elemento novo em um conflito que se arrasta desde 2018. Trump há tempos insiste em apontar supostas práticas desleais de outros países para tornarem suas exportações mais competitivas. Quando o presidente do BCE, Mario Draghi, insinuou a aprovação de novas medidas de estímulo, o mandatário norte-americano o atacou pelo que via como um ardil para desvalorizar o euro. Trump é o primeiro líder norte-americano em décadas a defender abertamente um dólar fraco.

A China, por sua vez, não tem interesse em grandes flutuações. O regime comunista procura estabilidade acima de tudo. E está consciente de que numa guerra cambial todos sairiam perdendo. Mas também tem claro que, se for golpeado, terá que responder. Cristina Varela, economista do BBVA Research, acredita que por enquanto a China esteja sofrendo mais os ataques que os EUA. Mas também recorda que o gigante oriental dispõe de mais margem para impulsionar políticas que sustentem o crescimento do que seu rival ocidental. “O ocorrido nesta semana serve como aviso de que a guerra comercial evolui para uma guerra econômica franca e aberta”, conclui Brzeski.

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