Postado às 07h14 | 11 Jan 2020
O cheque especial é o emblema das disfunções da intermediação financeira. Apesar da redução da taxa Selic e das medidas adotadas pelas três diretorias anteriores do Banco Central, as taxas de juros do cheque especial subiram em cada uma delas. O motivo é só um, a inadequação da política bancária. É míope, estática e anacrônica.
Note-se que em vez de avançar, o sistema retrocedeu. A relação crédito/PIB encolheu e está na metade do seu potencial. A inadimplência bancária diminuiu apenas porque depois de um prazo é excluída do balanço dos bancos. Todavia, a sistêmica aumentou, há mais de 63 milhões de cidadãos com anotações de atraso nos birôs de crédito. É um recorde histórico, quiçá mundial.
Insiste-se que a questão é de custos, mas as taxas médias são 60 vezes maiores do que o custo do dinheiro. No entanto, omite-se nos debates sobre o crédito a inadequação da tributação direta e indireta sobre a intermediação.
A concentração é observada como problema, entretanto, no cheque especial. As taxas mais altas são 71% maiores do que a média dos quatro maiores bancos, no rotativo do cartão são 220% maiores e no crédito pessoal não consignado são mais de 1.000% maiores. É fato: as taxas dos quatro grandes bancos são muito altas, mas estão longe das mais altas.
Uma bandeira levantada é a da falta de educação financeira. Todavia, o sistema é ininteligível para 99% da população brasileira. As informações são bizantinas: taxa mês e taxa ano, dias corridos e dias úteis, impostos que são cobrados e não aparecem nem na demonstração de resultados nem na nota de crédito do Banco Central.
São os mesmos diagnósticos de sempre e muda-se sem mudar nada. A resolução que coloca um limite ao cheque especial tem o mérito de tentar reverter esse quadro, e tem semelhanças com o que aconteceu em 2003. Na época, o consignado do INSS apresentava distorções perigosas.
O excesso de voracidade de alguns agentes financeiros causava danos perniciosos, como um comprometimento elevado das aposentadorias com os financiamentos, propaganda subestimando o custo, falta de padronização das informações e custo efetivo do crédito exagerado. Era um vale-tudo.
Em 2005, foi feita uma correção impondo tetos de taxas, de comprometimento da renda e de prazos e a fixação de protocolos de informações. O resultado foi que as taxas despencaram, acabaram os abusos e as distorções foram eliminadas. O positivo é que a modalidade tem gerado lucros sustentáveis para os bancos até os dias de hoje.
Não se deve confundir livre mercado com vale-tudo. Restrições, em determinadas circunstâncias, são eficazes e, sim, fazem parte do ferramental para dar mais eficiência à intermediação. São usadas para corrigir distorções como falhas de mercado, abusos de poder econômico, externalidades e assimetrias informacionais.
A atual norma que coloca um limite ao cheque especial tem algumas imprecisões e pode ser aprimorada. Também pode ser complementada, com outras medidas como regras de precificação, de padronização de informações e protocolos de contratação e execuções de operações.
A regulação em debate é eficaz em reduzir o custo do cheque especial, mais pode ser mais ainda se acompanhada de uma agenda de crédito mais abrangente, mais dinâmica e mais inclusiva.
Seria bom para os bancos, é melhor ainda para os brasileiros.
Roberto Luis Troster
Doutor em economia e consultor, ex-economista-chefe da Febraban (Federação Brasileira de Bancos)
Taxas de juros altas realmente sacrificam os viciados em crédito. O superendividado crônico sofre de uma dolorosa mescla de descaso e compulsão, uma doença com destrutivos efeitos físicos, psicológicos e sociais.
Para um endividado que deixa a dívida do cheque especial acumular, uma taxa de 8% ao mês vira 160% ao ano, já considerado o IOF. Antes da resolução, a taxa média era algo como 13% ao mês, ou quase 350% ao ano. A taxa melhorou, mas sem ter-se tornado baixa.
O cálculo dessa exorbitante taxa anual realmente impressiona, mas é pouco realista na maior parte dos casos. Pessoas com boa disciplina financeira mantém um limite de cheque especial apenas por precaução e o usam esporadicamente e só quando algo dá errado. Mesmo assim, quem fica negativo (dia sim, dia não) a 8% ao mês, pagando juros em metade dos dias, tem um custo efetivo anual dos mesmos 160%, devido ao efeito do IOF. Nesse caso, de cada R$ 10 pagos, R$ 6 vão para o banco e R$ 4 para o governo. Os juros do cheque especial são caros, mas o imposto também é. O governo posa de bom moço e limita os juros com uma mão, mas aproveita para participar da festa com a outra.
Nem o viciado em dívida nem o devedor esporádico são sensíveis ao efeito combinado da taxa de juros e do IOF. Um por que negligencia as consequências do seu ato, o outro porque acha que é pouco dinheiro e que nunca mais cometerá o mesmo erro. Os dois estão envergonhados e preferem esquecer o assunto.
Essa baixa sensibilidade do volume emprestado à taxa é um dos motivos pelos quais um banco tem pouco incentivo de reduzir a taxa de juros do cheque especial. Juros altos demais espantam o cliente normal. Permanece, principalmente, o insensível ao custo do dinheiro, que é o que dá trabalho e tem alta inadimplência. O banco não tem como deixar de cobrar juros altos, preso que está ao mesmo ciclo vicioso do endividado contumaz.
O governo resolveu proteger o consumidor de suas próprias fraquezas. Se certas pessoas são incapazes de se defender do seu próprio comportamento irracional, é bem razoável que alguém as proteja. É o que acontece com a limitação da velocidade, a obrigatoriedade do cinto de segurança, da cadeirinha e do capacete. Ou nas restrições ao álcool, ao fumo e a outras drogas. Como o cheque especial é um produto inelástico e viciante, faz sentido o governo entrar limitando a taxa de juros, com a finalidade de proteger as pessoas de si mesmas.
O problema está no precedente. Político quando acerta uma, se empolga e costuma querer mais e mais. Já sabemos que o controle de preços ou juros como forma de regular a economia não funciona e já criou muitos problemas. Nas décadas de 1970 e 1980 a inflação disparou, apesar do controle de preços. No Plano Cruzado só o que se conseguiu foi a falta de produtos nas prateleiras. O melhor exemplo está na Argentina, que de tempos em tempos tenta intervir nos preços do mercado e paga há décadas com a falta de investimentos e uma economia declinante.
O setor produtivo não confia em poderosos governantes de plantão que tenham o poder de inviabilizar os negócios. As empresas param de investir e produzir, o governo fica ansioso por fazer algo e acaba intervindo na economia, os riscos e os juros sobem e entramos em mais um ciclo vicioso. E tudo porque a intervenção nos preços e juros do mercado parecia ser uma boa ideia em algum cenário bem específico.
Roy Martelanc
Professor da FEA-USP e coordenador de projetos de finanças, banking e real estate da FIA (Fundação Instituto de Administração)